Uma quase breve nota sobre ele.

27/04/2016 16:20


   

     Com um pedaço de pizza na mão direita, os olhos que brilhavam e um sorriso tranquilo no canto da boca, tu me destes parabéns. Aquele momento poderia ser somente mais um no meio de tantos outros que eu vivia naquela cidade grande, fria e desconhecida, onde me encontrava, exatamente no dia dos meus vinte-e-sete-quase-felizes-mas-doloridos-anos-de-tentativa-amorosas-frustradas-de-vida. Eu poderia reconhecer aquele gesto de "parabenizar um estranho por mais um ano de vida" como algo automático, vazio de formas e sentimentos, mas por aquele momento, aquele simples momento, de alguma maneira eu conseguia esquecer tudo o que me afastava de mim e de meu coração, pude então voltar a sentir algo singelo, puro, com uma densidade que, há tempos, não se fazia presente em meus encontros - principalmente aqueles com todos esses estranhos que já passaram em minha vida. 

    Fostes te chegando próximo, cada vez mais próximo. A proximidade não se dava apenas na distância entre nossos corpos, a qual era diminuída pouco a pouco, como um pedaço de algodão doce colocado sobre a língua e a se desfazer em frações de segundos. Assim, nossos corpos se desfizeram dentro de um dos abraços mais aconchegantes que eu pude encontrar, alí, naquela cidade grande, fria e desconhecida. E lá eu estava, encontrando abrigo dentro do abraço de um desconhecido. Quentão, sorvete gelado no friozinho do quarto no meio da tarde de domingo que insistia em não passar. "Chega mais perto", tu me pedistes com calma e ternura no olhar, e assim fui cedendo as tuas investidas de uma aproximação debaixo das cobertas. Fostes me deixando confortável, me colocastes para descansar a cabeça em teu ombro, foste tocando o meu corpo com o carinho que até mesmo os velhos conhecidos dele não o tem. Mostrou se importar comigo e, pelo intervalo daquele domingo que insistia em não ir, acreditei em cada palavra que teu olhar e teus toques me diziam. Elas eram sinceras e existentes, tanto quanto os bolinhos de chuva que se desfazem na mesma língua onde o algodão doce repousou ainda cedo, nesta mesma nota que escrevo. 
Sem perceber, já estávamos falando de planos, teus pêlos grandes e os meus totalmente raspados, emprego, trabalhos, sonhos e desencantos - principalmente os amorosos. "Fica comigo esta noite. Dorme aqui!", me pedistes como quem cuida, quem quer, quem necessita da companhia do outro. Não hesitei em dizer "sim", e logo aceitei o teu pedido. Já fazia tempo que não me sentia tão confortável e feliz ao lado de alguém, mesmo que pelo breve espaço de um instante. De certa maneira, tu trouxestes algo leve e puro pra mim, um sentimento tão honesto quanto os teus olhos que me pediam pra ficar.
O teu corpo no meu, o meu corpo no teu. Uma escrita quase indecifrável perante as rasuras que o destino lançou sobre nossos corpos, nus sobre a cama, feito folha de papel rabiscada e amassada na tentativa de esconder algo que já fora escrito alí. E mais rasuras. O teu corpo a roçar sobre o meu corpo. Respiração ofegante, as mãos que se encontram como um cego que reconhece, no meio da escuridão de sua visão falha, um rosto conhecido. Nos desfazemos sobre a cama. Corpos cansados, respirações exaustas. Então esperei que o afastamento-pós-gozo daquele rapaz, que se encontrava deitado ao meu lado numa cama, em um quarto de um edifico qualquer no centro daquela cidade grande, fria, desconhecida e cinzenta, porque segundo a regra dos desconhecidos que fingem se conhecer, o gozo deve ser seguido de um estranhamento, um esquecimento, uma mutilação de toda situação que antecedeu aquele momento. Mas para minha surpresa e reencantamento, ele se virou e, enquanto eu olhava os carros que cortavam o silêncio daquela avenida exposta na janela do seu quarto, ele me abraçou forte, apertado, assim quebrando o frágil espaço entre nossos corpos e a regra dos desconhecidos que fingem se conhecer.
Cinco da manhã, abro os olhos, adormeci em teus braços. Respiro devagar, calmo, sem pressa. Não quero te acordar, não quero me acordar. E fico alí, com os olhos fixos na janela, parado e suspenso entre teus braços que me envolvem. Levanto calmamente e me ponho de pé frente à janela. Lá em baixo pessoas entram em seus ônibus rumo às suas vidas cotidianas, e num breve devaneio me questiono: "quantos amores cabem dentro de todas aquelas pessoas lá em baixo? Quantos amores cabem dentro de mim?". O silêncio gritante de meus pensamentos é desfeito ao ver teus olhos fitarem a penumbra do meu corpo nu localizado entre a janela e o teu olhar. 
Toalhas, banho, pizza-gelada-no-café-da-manhã. Tu me dás um abraço e eu aconchego o meu rosto na dobra onde teu pescoço vira ombro. Sabíamos que naquele momento os nossos corpos começavam a se despedir. Descemos o elevador em silêncio e, andando exatamente vinte-e-sete-passos-contados, nos dizemos "adeus" com olhos de quem quer ficar. Entro no táxi, te vejo afastar entre as tantas pessoas que andam na calçada, não há volta. Queria eu poder fazer daquele momento uma fita K7, e assim rebobiná-la inúmeras vezes sempre que percebesse que o fim daquele domingo estava a chegar, mas não posso. Então assim, me contento em te ver desaparecer no horizonte daquela cidade grande, fria, desconhecida e cinzenta, aonde são raros os domingos que fazem sol.
 

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